«Sim, quando tudo está dito e feito, não importa o modo como se consideram as coisas, ê era, na opinião de qualquer pessoa, uma criança modelo. Sim, ê era.
Ê era também o mais solitário bebé na história do mundo inteiro. E esta não é uma vã especulação. É um facto. Deus disse-mo.
A mamã era uma porca - um lixo de uma cona, bêbeda, doente dos miolos e porca. Era preguiçosa e indolente e suja e beligerante e no seu todo malvada. A Mãe era uma esponja - uma bêbeda - de olhos esvaídos e um trambolho com um sabor a cerveja feita em casa.
As bebedeiras da mãe processavam-se em círculos, a consciência a seguir à inconsciência, como dois porcos enormes, cada um a comer a cauda do outro - um negro, gordo e incrivelmente obsceno, o outro ébrio, a falar alto, com dois olhos sanguinolentos, maldoso e muito próximo do outro - e ela aderia a esses ciclos rigorosamente.
(...)
Então, tendo posto de parte ódio suficiente para ministrar a um exército, ela começaria - e dão-me calafrios só de pensar nisso - ela começaria - esta mesma cadela perversa, perversa como a merda - ela começaria a cantar uma versão das "Dez Garrafas Verdes", numa crescente algazarra. Quando chegava à parte que dizia "...e se uma garrafa verde caísse acidentalmente, não haveria mais garrafas verdes...", dava-lhe simplesmente o amoque - sim, lançada num lance de de tão imparável violência que simplesmente não era seguro estar ao seu alcance.
(...)
Até hoje pasmo de admiração em como consegui sobreviver aos meus dias de criança. Pois dizer que ê era um bebé espancado seria um pouco mais que correcto - seria absolutamente correcto! Sim! Ê era uma porra dum bebé espancado!»
Nick Cave, E o Burro Viu o Anjo..., Editorial Estampa, Lisboa, 1997, pp.28-29
Finalmente, após um considerável tempo de busca, cá está ele, seguro nas minhas mãos, à mercê dos meus olhos ávidos... Promete... =)
4 comentários:
E cá temos uma boa sugestão. Agradou-me esta espreitadela...
uma bela semana para ti
Beijinhos
Daniela
Vai inserindo excertos à medida que fores lendo... Este então é impagável!
Bjos
Bet,
Ao ver o seu blog achei curioso o encontro com Nick Cave cuja presen-
ça já me chegou e citei. Por outro lado, essa força tem muito que ver com a hora entretanto vivida.
Já há um certo tempo que não conta-ctava consigo, sendo ceto que é das
pessoas que mais exprime coisas que também sinto, como foi o caso agora. Agradeço-lhe vivamente o seu
contacto. Também quero assinalar o seu post a seguir ao «editorial».
A poética tem muitas formas para projectarmos o nosso espírito.
Um abraço,
Rocha de Sousa
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